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segunda-feira, junho 27, 2005

Como eu vinguei Armando Gama com um balázio de pé esquerdo no estádio da Luz

Recuem no tempo até 1983. Imaginem a plateia do Carnegie Hall. Algures na 4ª fila, à espera de que o Frank Sinatra acabe o concerto, Armando Gama espreita a oportunidade. A orquestra embrulha os restos de «New York, New York», o público aplaude, levanta-se e sai. Armando não. Armando espera, esconde-se entre as cadeiras, evita as rondas dos seguranças, dilui-se no escuro. 40 minutos depois, a aberta: pela socapa, já com as luzes apagadas e os microfones desligados Armando consegue chegar ao palco, e perante o olhar atónito dos seguranças, senta-se ao piano a tocar «Adoro Chopin, adoro Chopin».

Está feliz. Por uma fracção de segundo pensa que, com um pouco de sorte, o Frank (o bom e velho Frank) até pode vir espreitar à porta do camarim («Hey Johnny, check out who's that portuguese guy, he sounds great») quem sabe até talvez convidá-lo para um copo de whisky, trocar umas piadas entre profissionais e números de telefone, ensaiar os primeiros compassos de «Beautiful, beautiful this ballad I give you», talvez o título do próximo álbum do Frankie, disponível para refrescar o reportório com o contributo do «my very good friend Are-mahn-du».

Será este o princípio de uma bela amizade? pergunta-se Armando enquanto os seguranças, firmes mas correctos, o agarram por debaixo dos braços e o conduzem para a saída. Como James Cagney em White Heat, tem vontade de gritar «Made it, ma! Top of the world!» antes de rebentar com o reservatório de combustível. Mas murmura apenas, perante os acenos compassivos e preocupados dos homens que o escoltam: «Adoro Chopin, adoro Chopin».

Agora avancem no tempo até 2005 e ao estádio da Luz. Vêem aquele ali ao fundo? Sou eu. Eu a pousar o saco, eu a tirar as botas do saco, a equipar-me, no mesmo balneário onde os gregos fizeram História. Eu a sair para o relvado pelas portas deslizantes do túnel. Eu a cheirar a erva cortada, a olhar para as bancadas vazias. (Felizmente vazias, que o ridículo mata, mas o ridículo sem testemunhas mata menos um bocadinho e naquela manhã não havia testemunhas, apenas cúmplices). Sou eu a correr, a respirar fundo, a tocar a bola a intervalos regulares, a encher o pé e a fazer História, - ou pelo menos a fazer a minha pequena história - na mesma baliza onde o Postiga traumatizou o James para o resto da vida.

Sim, eu também já marquei um golo no relvado principal da Luz - rói-te de inveja, David Beckham! - e tenho testemunhas disso. Não, não fui arrastado para a saída pelos seguranças, e também não tive a sorte de o Rui Costa vir espreitar o meu toque de bola e mudar-me a vida de um momento para o outro. Mas quando o jogo acabou e voltei para o vestiário dei por mim a assobiar baixinho «Adoro Chopin, adoro Chopin».

Armando Gama, meu semelhante, meu irmão, aqui te faço uma jura. Se algum dia eu voltar a jogar na Luz, desta vez com bancadas cheias, prometo-te que vais actuar no círculo central, antes do pontapé de saída, com o teu piano branco. Lá do alto, o Frank há-de estar a ver e, quem sabe, a lamentar a oportunidade perdida naquela noite no Carnegie Hall. E não me agradeças: nós, os medíocres de todos os ramos da vida, temos de ser uns para os outros.

(by Espoliado de Incheon)

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