Como eu vinguei Armando Gama com um balázio de pé esquerdo no estádio da Luz
Recuem no tempo até 1983. Imaginem a plateia do Carnegie Hall. Algures na 4ª fila, à espera de que o Frank Sinatra acabe o concerto, Armando Gama espreita a oportunidade. A orquestra embrulha os restos de «New York, New York», o público aplaude, levanta-se e sai. Armando não. Armando espera, esconde-se entre as cadeiras, evita as rondas dos seguranças, dilui-se no escuro. 40 minutos depois, a aberta: pela socapa, já com as luzes apagadas e os microfones desligados Armando consegue chegar ao palco, e perante o olhar atónito dos seguranças, senta-se ao piano a tocar «Adoro Chopin, adoro Chopin».
Está feliz. Por uma fracção de segundo pensa que, com um pouco de sorte, o Frank (o bom e velho Frank) até pode vir espreitar à porta do camarim («Hey Johnny, check out who's that portuguese guy, he sounds great») quem sabe até talvez convidá-lo para um copo de whisky, trocar umas piadas entre profissionais e números de telefone, ensaiar os primeiros compassos de «Beautiful, beautiful this ballad I give you», talvez o título do próximo álbum do Frankie, disponível para refrescar o reportório com o contributo do «my very good friend Are-mahn-du».
Será este o princípio de uma bela amizade? pergunta-se Armando enquanto os seguranças, firmes mas correctos, o agarram por debaixo dos braços e o conduzem para a saída. Como James Cagney em White Heat, tem vontade de gritar «Made it, ma! Top of the world!» antes de rebentar com o reservatório de combustível. Mas murmura apenas, perante os acenos compassivos e preocupados dos homens que o escoltam: «Adoro Chopin, adoro Chopin».
Agora avancem no tempo até 2005 e ao estádio da Luz. Vêem aquele ali ao fundo? Sou eu. Eu a pousar o saco, eu a tirar as botas do saco, a equipar-me, no mesmo balneário onde os gregos fizeram História. Eu a sair para o relvado pelas portas deslizantes do túnel. Eu a cheirar a erva cortada, a olhar para as bancadas vazias. (Felizmente vazias, que o ridículo mata, mas o ridículo sem testemunhas mata menos um bocadinho e naquela manhã não havia testemunhas, apenas cúmplices). Sou eu a correr, a respirar fundo, a tocar a bola a intervalos regulares, a encher o pé e a fazer História, - ou pelo menos a fazer a minha pequena história - na mesma baliza onde o Postiga traumatizou o James para o resto da vida.
Sim, eu também já marquei um golo no relvado principal da Luz - rói-te de inveja, David Beckham! - e tenho testemunhas disso. Não, não fui arrastado para a saída pelos seguranças, e também não tive a sorte de o Rui Costa vir espreitar o meu toque de bola e mudar-me a vida de um momento para o outro. Mas quando o jogo acabou e voltei para o vestiário dei por mim a assobiar baixinho «Adoro Chopin, adoro Chopin».
Armando Gama, meu semelhante, meu irmão, aqui te faço uma jura. Se algum dia eu voltar a jogar na Luz, desta vez com bancadas cheias, prometo-te que vais actuar no círculo central, antes do pontapé de saída, com o teu piano branco. Lá do alto, o Frank há-de estar a ver e, quem sabe, a lamentar a oportunidade perdida naquela noite no Carnegie Hall. E não me agradeças: nós, os medíocres de todos os ramos da vida, temos de ser uns para os outros.
(by Espoliado de Incheon)
Está feliz. Por uma fracção de segundo pensa que, com um pouco de sorte, o Frank (o bom e velho Frank) até pode vir espreitar à porta do camarim («Hey Johnny, check out who's that portuguese guy, he sounds great») quem sabe até talvez convidá-lo para um copo de whisky, trocar umas piadas entre profissionais e números de telefone, ensaiar os primeiros compassos de «Beautiful, beautiful this ballad I give you», talvez o título do próximo álbum do Frankie, disponível para refrescar o reportório com o contributo do «my very good friend Are-mahn-du».
Será este o princípio de uma bela amizade? pergunta-se Armando enquanto os seguranças, firmes mas correctos, o agarram por debaixo dos braços e o conduzem para a saída. Como James Cagney em White Heat, tem vontade de gritar «Made it, ma! Top of the world!» antes de rebentar com o reservatório de combustível. Mas murmura apenas, perante os acenos compassivos e preocupados dos homens que o escoltam: «Adoro Chopin, adoro Chopin».
Agora avancem no tempo até 2005 e ao estádio da Luz. Vêem aquele ali ao fundo? Sou eu. Eu a pousar o saco, eu a tirar as botas do saco, a equipar-me, no mesmo balneário onde os gregos fizeram História. Eu a sair para o relvado pelas portas deslizantes do túnel. Eu a cheirar a erva cortada, a olhar para as bancadas vazias. (Felizmente vazias, que o ridículo mata, mas o ridículo sem testemunhas mata menos um bocadinho e naquela manhã não havia testemunhas, apenas cúmplices). Sou eu a correr, a respirar fundo, a tocar a bola a intervalos regulares, a encher o pé e a fazer História, - ou pelo menos a fazer a minha pequena história - na mesma baliza onde o Postiga traumatizou o James para o resto da vida.
Sim, eu também já marquei um golo no relvado principal da Luz - rói-te de inveja, David Beckham! - e tenho testemunhas disso. Não, não fui arrastado para a saída pelos seguranças, e também não tive a sorte de o Rui Costa vir espreitar o meu toque de bola e mudar-me a vida de um momento para o outro. Mas quando o jogo acabou e voltei para o vestiário dei por mim a assobiar baixinho «Adoro Chopin, adoro Chopin».
Armando Gama, meu semelhante, meu irmão, aqui te faço uma jura. Se algum dia eu voltar a jogar na Luz, desta vez com bancadas cheias, prometo-te que vais actuar no círculo central, antes do pontapé de saída, com o teu piano branco. Lá do alto, o Frank há-de estar a ver e, quem sabe, a lamentar a oportunidade perdida naquela noite no Carnegie Hall. E não me agradeças: nós, os medíocres de todos os ramos da vida, temos de ser uns para os outros.
(by Espoliado de Incheon)
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