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quinta-feira, junho 02, 2005

O melhor golo de todos os tempos

Não é um, são dois. E nesses dois golos - o de Maradona à Inglaterra, em 1986, e o de Carlos Alberto à Itália, em 1970 - moram, em versão condensada, todas as nuances da cultura ocidental desde a Odisseia, pelo menos. Mais: as atitudes perante esses golos definem a personalidade de quem os vê, com mais precisão e rigor do que qualquer questionário de Proust, qualquer grelha de posicionamento político, qualquer teste de Rorschach.

A insolência individualista de Maradona subverteu as leis da geometria e descobriu que o caminho mais curto entre dois pontos é uma sucessão de ziguezagues. E demonstrou também que um inglês bom é um inglês sentado. À parte isso, foi uma das mais absolutas manifestações do génio humano que os últimos 20 anos nos deram, e neste «uma das» abro caminho para dois ou três filmes, um ou dois livros e um ou nenhum CD.

O golo de Carlos Alberto é outra coisa. É a utopia passada a letra de forma, a demonstração prática do que poderia ser uma sociedade perfeita em acção, a liberdade, igualdade e fraternidade em tons de verde, amarelo e azul, a distribuição da terra a quem a trabalha, parcela a parcela, numa lógica irrecusável que mistura justiça, moral, produtividade e busca do lucro em doses iguais.

Seguem-se seis parágrafos perfeitamente dispensáveis para quem viu esse golo recentemente ou para quem tem o bom senso de não gostar de descrições hiperbólicas e exaltadas. A conclusão está a seguir ao itálico, podem fazer forward para lá.

(Dos onze jogadores brasileiros dessa final do Azteca apenas dois não tocam na bola. O guarda-redes Félix, cuja farda azul lhe reserva um papel de polícia distante, tornado inútil pela força revolucionária das circunstâncias e o central Brito, cujo nome de funcionário público desaconselha o mergulho na lenda.

De resto, tudo começa numa recuperação defensiva do ponta-de-lança Tostão, no lado esquerdo da defesa canarinha. O toque ligeiro sobre um italiano dá sentido ao carrinho de Everaldo, cujo esforço permite a Tostão o toque tranquilo para o central Piazza. A partir daqui, estabelecidas as bases da revolução, é altura de construir.

Piazza dá a Clodoaldo, um trinco que nunca o foi. Pelé entra na cena para dar um toque curto para Gérson, que devolve a Clodoaldo. Com a equipa equilibrada, o médio decide introduzir um pouco de humor rodopiando e trocando as pernas sobre quatro italianos. Para quê? Para o mesmo que as pessoas usam o humor nas suas vidas: para ganhar tempo, para enfrentar as injustiças da vida, para preparar o futuro.

O futuro, neste caso, é um passe para Rivelino, na lateral-esquerda, sobre a linha do meio campo. E aqui o absurdo traz-nos o grão de loucura necessário para todas as histórias felizes: trinta metros à frente, Jairzinho espera, colado à linha do mesmo lado. Que o extremo-direito espere tranquilamente pela bola, no ponto oposto ao das suas obrigações e da lógica, eis o que desencadeia o desequilíbrio definitivo na conservadora Itália: Jairzinho começa a correr em paralelo à linha da grande área, até encontrar Pelé, um pouco antes da meia-lua. Tostão faz um movimento para o interior, arrastando a marcação de Rosato e Facchetti. E pela cratera aberta com a mudança de flanco de Jairzinho e a simulação de Tostão entra, a todo o vapor, a última personagem desta história: o lateral direito Carlos Alberto, que o início do filme apanha junto à grande área do Brasil, a passo, com a indolência de quem rói uma maçã e que agora acelera em direcção à história.

Pelé trava o movimento, faz suspender o tempo com a arrogância dos imortais e solta-lhe uma bola que de tão lenta e perfeita transporta toda a sabedoria do mundo. Carlos Alberto beneficia de um pequeno ressalto num tufo de relva, uma fracção de segundo antes do contacto: a bola sobe o suficiente para ser agredida no ponto G, aquele que a solta com a força e a precisão desenhada nas estrelas, e que só muito de vez em quando os melhores jogadores conseguem encontrar.

As redes abanam, Carlos Alberto prossegue a corrida para trás da baliza de Albertosi, trava o passo, abre os braços para o céu e grita, marcando bem as consoantes: «Pppputtttta qqque pppppariu!». E nenhum outro comentário poderia ilustrar melhor o que realmente aconteceu naqueles 39 segundos de epifania e comunhão com o Absoluto)


Entre o génio solitário de Maradona, a construir uma catedral em movimento com a perna esquerda, e a perfeição sorridente e sábia do colectivo canarinho a desmontar o status quo a golpes alternados de lógica e absurdo, competência e arte, rigor e fantasia está tudo aquilo a que aspiramos durante uma vida. E aquilo que somos define-se pela escolha que fazemos entre um e outro caminho, sempre que nos põem a bola nos pés.

Mesmo falhando – e falhamos quase sempre – esta nunca é uma opção inocente: diz-me como jogas, dir-te-ei quem és. Para mim é fácil e instintivo catalogar as pessoas com quem me cruzo nestas duas categorias, maradonistas e albertianos. Só não sei dizer-vos qual destes dois é o melhor golo de todos os tempos. Mas tenho esperança de saber a resposta antes de morrer.

(by Espoliado de Incheon)

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