Lamento
Já ninguém se lembra do Tahamata, o holandês-malaio-anão que partia as pernas aos adversários à força de dribles e vudu, uma espécie de Zé Dominguez que deu certo após dez minutos de microondas: vi-o acabar com a carreira do Freitas, nas Antas, em 1981, jogando pelo Standard de Liège, numa equipa que também tinha um jovem Preud'homme na baliza, provando-se assim que houve um tempo em que Preud'homme foi jovem, e ainda um barbudo Gerets a lateral-direito (e ainda hoje acho que todos os laterais-direitos deviam ser obrigados a usar barba, ou pelo menos um bigode à Gabriel Pietra) e era treinado por Raymond Goethals, alcunhado de Elvis Presley pelos seus jogadores, por causa da poupa pintada de castanho, um belga jarreta que trocava o nome dos adversários e dos seus, marca de estilo mais tarde copiada por Artur Jorge, quando ainda tinha bigode à Gabriel Pietra mas já não podia jogar, nem mesmo a lateral-direito, e que quando era seleccionador chamava Laureta ao Pauleta, o que é muito bem feito para os dois, porque quem aceita ficar conhecido o resto da vida por uma alcunha que rima com perneta, corneta e outras coisas acabadas em «eta» dificilmente pode ser levado a sério, mesmo que venha a tornar-se o melhor marcador da história da selecção, ultrapassando um Eusébio que, sendo o maior dos maiores, e tendo feito milagres semana sim semana sim com uma bola nos pés, que eu saiba nunca partiu a perna a qualquer adversário, nem com dribles nem com vudu, talvez por não ser indonésio, ou malaio, ou sumatrense e não ter um nome tão assustador como Tahamata, que se não tivesse sido extremo no Ajax, no Standard e no Feyenoord seria, com toda a certeza, imediato do Sandokan e dos seus tigres de Mompracem, embora tivesse uma classe natural incomparavelmente superior à do canastrão do Kabir Bedi, que fazia um Sandokan a falar italiano mas besuntava os lábios com baton para o cieiro e punha rimel nas pestanas e tinha posters a meio-corpo nos barbeiros da minha infância, entre o Bruce Lee e o Charles Bronson, e eu achava que quando o episódio do Sandokan acabava ele ia mostrar a pilinha à Mariana, talvez por não ter nada de mais interessante para fazer, talvez por saber que nunca seria capaz de partir pernas a adversários com dribles e vudu, como o seu ajudante de campo Tahamata, que quando não andava à trolha com os navios ingleses do James Brooke se entretinha a driblar adversários pela lateral, e talvez o Freitas não tivesse televisão, ou talvez não visse os episódios do Sandokan, porque nem desconfiou quando o Tahamata passou por ele a primeira vez, depois a segunda, depois a terceira, e o Freitas a perder peças, a perna a ficar para trás, depois para a frente, depois para o lado, o corpo a mostrar-lhe caminhos que a perna já não podia seguir, e o Tahamata, agarrado às cordas do veleiro, a driblar com o punhal entre os dentes, de lá para cá, de cá para lá e eu a ver tudo, na Superior Norte, a pensar que nunca na vida ia esquecer o Tahamata e o Sandokan e, acima de tudo, o olhar meigo da Mariana, a quem, estou certo, no silêncio conformado dos ajudantes leais, o Tahamata dedicava dribles e pernas partidas da mesma forma que os toureiros dedicam faenas e orelhas cortadas às Verónicas desta vida.
Já ninguém se lembra do Tahamata e eu tenho pena.
(by Espoliado de Incheon)
Já ninguém se lembra do Tahamata e eu tenho pena.
(by Espoliado de Incheon)
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