Em louvor de Cicinho
Há quem acredite que o futebol é democracia num campo de relva. Porque todos estão em igualdade perante regras universais. E porque as diferenças são feitas por variáveis como talento, inteligência, experiência e força, que só marginalmente são afectadas pela condição social.
Quando ouço este tipo de frases rio-me. E respondo: vão lá defender essa ideia diante de um lateral-direito. Se tiverem sorte, recebem um olhar triste a arrastar pelo chão. Em dia de azar (basta lembrar que Paulinho Santos também já passou por lá), o mais provável é levarem um pontapé no céu da boca.
Dos milhões de putos que adoram futebol, sonham com futebol, vivem futebol de manhã à noite, nem um, um só, unzinho que seja, quer ser lateral-direito quando for grande. Pontas-de-lança? Obviamente. Maestros com número 10? Legiões deles. Guarda-redes? Sim, claro: como não ficar seduzido pelas camisolas diferentes, pelos mergulhos espectaculares, pelas miúdas delirantes com tanta agilidade? Central é o destino eleito dos grandalhões sem jeito, que roubam berlindes no recreio e dão caroladas quando os professores não vêem. Mesmo os trincos já alimentam visões de grandeza, pelo menos desde que Paulo Sousa deu um toque de classe à camisola 6. Mas lateral-direito? Na escala dos sonhos dos miúdos - e esse é o barómetro mais fiável para as emoções do futebol - o lugar do lateral-direito está um pouco abaixo do almeida e apenas um nadinha acima do polícia municipal.
Quem era o lateral-direito da selecção húngara de 54? Do Real Madrid de 55-60? Do Benfica bicampeão europeu? Do Santos, alguém se lembra do lateral direito do Santos? Do da Holanda de 74? Da Itália de 1982? Do Milan dos anos 90? Se alguém souber sem cábulas a resposta a mais do que duas destas perguntas de algibeira, parabéns: a sua capacidade para guardar velharias inúteis no sótão é ainda superior à minha.
A verdade, triste, mas incontornável, é que a camisola 2 é aquela com quem a imortalidade nada quis; o reduto dos últimos escolhidos nos jogos de rua; o «então pode ser Pepsi...» da organização táctica; a gorda com borbulhas que se convida para dançar quando todas as outras possibilidades estão esgotadas e a festa chega ao fim.
Lateral-direito é o lugar mais próximo da invisibilidade. Mais invisível ainda que o de apanha-bolas: já alguém bateu palmas a um lateral-direito que mostra habilidades ao intervalo? Por tudo isto, deixem que vos confesse uma coisa: sempre que vejo jogar o Cicinho, no São Paulo e no escrete, fico com um sorriso tonto no canto da boca.
Um lateral-direito que teima em jogar tanto à bola é alguém que ainda acredita na felicidade, na justiça e no paraíso eterno para os homens de boa vontade. Para já não falar no Pai Natal. E, com perdão pelo sentimentalismo de kleenex a tiracolo, sou daqueles que acham comovente ver um homem a lutar sozinho contra as evidências do destino.
(by Espoliado de Incheon)
Quando ouço este tipo de frases rio-me. E respondo: vão lá defender essa ideia diante de um lateral-direito. Se tiverem sorte, recebem um olhar triste a arrastar pelo chão. Em dia de azar (basta lembrar que Paulinho Santos também já passou por lá), o mais provável é levarem um pontapé no céu da boca.
Dos milhões de putos que adoram futebol, sonham com futebol, vivem futebol de manhã à noite, nem um, um só, unzinho que seja, quer ser lateral-direito quando for grande. Pontas-de-lança? Obviamente. Maestros com número 10? Legiões deles. Guarda-redes? Sim, claro: como não ficar seduzido pelas camisolas diferentes, pelos mergulhos espectaculares, pelas miúdas delirantes com tanta agilidade? Central é o destino eleito dos grandalhões sem jeito, que roubam berlindes no recreio e dão caroladas quando os professores não vêem. Mesmo os trincos já alimentam visões de grandeza, pelo menos desde que Paulo Sousa deu um toque de classe à camisola 6. Mas lateral-direito? Na escala dos sonhos dos miúdos - e esse é o barómetro mais fiável para as emoções do futebol - o lugar do lateral-direito está um pouco abaixo do almeida e apenas um nadinha acima do polícia municipal.
Quem era o lateral-direito da selecção húngara de 54? Do Real Madrid de 55-60? Do Benfica bicampeão europeu? Do Santos, alguém se lembra do lateral direito do Santos? Do da Holanda de 74? Da Itália de 1982? Do Milan dos anos 90? Se alguém souber sem cábulas a resposta a mais do que duas destas perguntas de algibeira, parabéns: a sua capacidade para guardar velharias inúteis no sótão é ainda superior à minha.
A verdade, triste, mas incontornável, é que a camisola 2 é aquela com quem a imortalidade nada quis; o reduto dos últimos escolhidos nos jogos de rua; o «então pode ser Pepsi...» da organização táctica; a gorda com borbulhas que se convida para dançar quando todas as outras possibilidades estão esgotadas e a festa chega ao fim.
Lateral-direito é o lugar mais próximo da invisibilidade. Mais invisível ainda que o de apanha-bolas: já alguém bateu palmas a um lateral-direito que mostra habilidades ao intervalo? Por tudo isto, deixem que vos confesse uma coisa: sempre que vejo jogar o Cicinho, no São Paulo e no escrete, fico com um sorriso tonto no canto da boca.
Um lateral-direito que teima em jogar tanto à bola é alguém que ainda acredita na felicidade, na justiça e no paraíso eterno para os homens de boa vontade. Para já não falar no Pai Natal. E, com perdão pelo sentimentalismo de kleenex a tiracolo, sou daqueles que acham comovente ver um homem a lutar sozinho contra as evidências do destino.
(by Espoliado de Incheon)
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