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sexta-feira, maio 06, 2005

Uma fatia da infância

Tinha onze anos quando vi pela primeira vez uma equipa portuguesa numa final europeia. O Benfica de Eriksson (Bento, Pietra, Humberto, Bastos Lopes, Veloso, Shéu, Carlos Manuel, Stromberg, Chalana, Filipovic, Nené, mais o Álvaro, o José Luís, o Alves e o Diamantino) já tinha entrado no meu imaginário pela gloriosa vitória em Roma (Tancredi, Nela, Vierchowod, Di Bartolomei, Maldera, Conti, Prohaska, Ancelotti, Falcão, Pruzzo e Iorio) mas perceber que um dos «nossos» podia ter a consagração suprema daqueles travellings lentos ao longo dos onze rostos alinhados a meio-campo, numa quarta-feira de Maio, teve a força de uma revolução no meu mundo.

Um ano depois, foi já sem surpresa, mas com igual intensidade, que assisti à estreia do F.C. Porto (Zé Beto, João Pinto, Eurico, Lima Pereira, Eduardo Luís, Frasco, Jaime Pacheco, Sousa, Jaime Magalhães, Gomes e Vermelhinho) nessas quartas-feiras mágicas. Do outro lado estava o melhor jogador do Mundo, na era-pré-Maradona, e a Juventus (Tacconi, Gentile, Brio, Scirea, Cabrini, Bonini, Briaschi, Vignola, Platini, Rossi e Boniek) era treinada por um tal Trapattoni que me fez perceber, aos 12 anos, que as vitórias nem sempre rimavam com alegria e encantamento.

A seguir veio a magia de Chalana, no Euro-84, a noite louca de Marselha (Bento, João Pinto, Eurico, Lima Pereira, Álvaro, Frasco, Sousa, Jaime Pacheco, Chalana, Jordão e Diamantino, mais Gomes e Nené), com a França, o milagre múltiplo de Estugarda, a humilhação do México-86, a consagração de Viena (Mlynarczyk, João Pinto, Eduardo Luís, Celso, Inácio, Quim, André, Sousa, Jaime Magalhães, Madjer e Futre, mais Frasco e Juary), as finais perdidas do Benfica no Neckarstadion e no Prater...

Quando dei por mim era um adulto. Ou algo parecido com isso. Percebi-o, porque começava a ser-me difícil fixar os nomes dos nossos adversários. E porque já não passava semanas a roer as unhas, antecipando uma qualquer meia-final com o Barcelona ou o Inter. Aliás, já nem sequer roía as unhas: comecei a fumar e, heresia suprema, até deixei de decorar os nossos onzes.

As emoções da infância estavam guardadas numa gaveta fechada à chave. Só a Selecção, muito de vez em quando, conseguia encontrá-la. Como na Holanda, em 2000. Como no Euro da bandeirinha na varanda, onde apesar de todo o folclore-pimba e das derrapagens populistas houve uma equipa capaz de ganhar a imortalidade no meu imaginário. Mas mesmo as vitórias do F.C. Porto de Mourinho já não mexiam com algo tão profundo: vivi-as como a consagração do melhor treinador da história do futebol português, e de uma cultura de valores colectivos que tinha em Jorge Costa, Baía e Costinha as expressões mais determinadas e em Deco e Alenitchev o talento autorizado pelo rigor. Um processo empolgante, muitas vezes brilhante, mas demasiado adulto e racional para me fazer sonhar com os jogos, muito menos decorar os onzes. Os «nossos» e os dos adversários.

Ao longo deste ano, a equipa de Peseiro soube fazer-me sonhar durante alguns momentos. Em Roterdão, durante 90 minutos, em casa com o Newcastle, durante 70, em Middlesbrough, durante 50. Com o AZ, durante metade do segundo jogo e nos cinco segundos que Pinilla demorou a marcar aquele golo em Alvalade. Os tempos mudaram, e daqui por uma semana terei dificuldades em lembrar-me de mais do que dois ou três jogadores dos holandeses. A própria equipa do Sporting não é fácil de memorizar: Rogério ou Miguel Garcia? Beto ou Enakharire? Custódio ou Rochemback? Hugo Viana ou Pedro Barbosa? Sá Pinto ou Douala?

Tenho 33 anos e até hoje nunca tinha visto o Sporting numa final europeia. No fundo, faltava-me uma pequena fatia da infância. A proeza dos homens de Peseiro chegou um pouco tarde de mais para a minha memória e para a capacidade de me sentir maravilhado com coisas que o tempo torna banais. Mas foi simpático da vossa parte, rapazes. Pela parte que me toca, obrigado.

(by Espoliado de Incheon)

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